Precisamos falar sobre cafuné

-Eu fiquei tão feliz por você passar um tempo fazendo cafuné em mim que comecei um texto.

-Oxi. Só por isso?

Imagina só a cara do ser humano desbloqueando o celular pra ler uma coisa dessas. Pode parecer esquisito, mas cabelo é um assunto sério pra mim e imagino que para o Bernardo também. Mas… Cafuné? Que lógica existe nisso?

São João de Meriti, 2008

Só existem quatro penteados de cabelo no mundo:

  • Preso em cima, solto embaixo
  • Preso em cima com um ‘franjão’, solto embaixo
  • Totalmente preso
  • Totalmente solto, repartido pro ‘lado de sempre’
Um pouco dos penteados de sempre e dos bastidores do meu relaxamento capilar ‘naquele lugar’ (Beleza Natural)

Faltando poucos minutos pras sete da manhã, é a minha avó quem penteia meu cabelo e eventualmente usa uma escova e grampos. Um pouco crescida, preciso sentar no chão ou no sofá pra ficar a uma altura favorável aos braços dela. Pra ser bem sincera, minha avó nunca foi aquele tipo de pessoa que usa a força durante o penteio, pelo contrário. Ou seja, depois de quase três meses sem relaxar o cabelo, a parte presa mais parecia um topete que não tinha graça nenhuma, afinal o volume do cabelo crespo crescido era visto como ‘falta de cuidado’.

Mas, eu nunca me importei muito com essa questão. Só achava engraçado aquelas mãos quase sexagenárias tentarem tirar o ‘frizz’ do meu cabelo com a mesma delicadeza que acariciavam os cachorros da casa.

Vou pra aula.

Sempre chega aquele momento em que, quer a aula esteja tediosa ou não, todo mundo busca uma distração. Hoje é um pouco mais fácil com celulares ao alcance das mãos, mas em 2008 as coisas não eram bem assim, principalmente em uma escola de Ensino Fundamental. Olhando para os lados, a gente vê uma conversinha paralela aqui e ali, alguém rabiscando no caderno ou na cadeira e, claro, meninas mexendo no próprio cabelo ou ganhando penteados gratuitamente. O meu olhar fixa nessa última cena.

Quando você é uma menina negra, geralmente só existem dois papéis: ser a ‘cabeleireira’ ou simplesmente observar. Se o seu cabelo tem cachos mais abertos e é longo, uma exceção se abre, mas não era o meu caso. Eu observava porque não sabia fazer penteado algum, então imaginava como seria o relaxamento de ter uma voluntária te deixando mais linda no meio da aula. Sim, era uma coisa meio ‘voyeur’ de tranças embutidas até a frustração começar a crescer com o tempo.

Quando você é uma menina negra, também nota as sutilezas. As professoras demonstram afeto por aí, porém as mãos delas também não alcançam seus cabelos de forma alguma. Não interessa se hoje você está de tranças, com o cabelo cheio de creme ou até mesmo de ‘chapinha’, nem elogios à aparência você escuta. Às vezes é só um momento qualquer na fila antes de a aula começar, mas você eventualmente verá a professora batendo papo com alguém enquanto faz carinho distraída na cabeça daquela menina que já foi eleita a mais bonita da turma.

Quando você é uma menina negra, aprende o que é ‘democracia’ quando a turma se une nesta importante votação: quais são as pessoas mais bonitas da sala?

O fantástico fenômeno do cafuné se repete em outras ocasiões. Brincadeiras de criança, como a do ‘salão de beleza’, conversas em família e até enquanto você espera por algo em uma fila imensa. Estimando que da educação infantil até agora (5° período da faculdade de Jornalismo na UFRJ) eu tive cerca de 200 dias letivos com aproximadamente 4h de aula em cada um — e que eu já tenha faltado uns 50 dias ao longo da vida inteira -, temos aproximadamente 14 mil horas de aula com uma carga horária significativa de cafunés, portanto essa é uma questão significativa pra mim.

Não sei vocês, mas quando eu penso na palavra afeto a primeira imagem que surge é exatamente um cafuné, assim como ‘aconchego’ me remete à abraços.

Quando o assunto é namoro, meu primeiro conflito com o Bernardo já é sobre tempo. Eu insisto que o nosso relacionamento começou no dia em que eu o pedi em namoro, já ele acredita que a data real foi dois meses antes, então só podemos concluir que ele acredita em algo muito próximo ao amor à primeira vista. Coragem.

Para o Bernardo, nessa época a gente já estava namorando

Aos 20 anos de idade, eu posso dizer que namoro meu próprio cabeleireiro. Quando você é uma menina negra que passou pela transição capilar, entende o peso dessa frase. O Bernardo já lavou, texturizou, descoloriu, raspou e até fez o ‘pé’ do meu cabelo. Ele embarca em todas essas loucuras e, curiosamente, esse ‘ritual afetivo’ está tão presente que eu hidratei o cabelo dele no mesmo dia em que o apresentei à minha mãe. Quando você é um menino negro que passou a vida inteira com cortes à máquina, porém decidiu deixar o crespo crescer e a partir disso se viu muito bonito e atraente, entende o que eu quero dizer.

Quando, no clima mais despreocupado do mundo, o Bernardo faz cafuné em mim, eu me sinto em algum tipo de reconciliação com o passado, só que não é apenas isso. É um pouco do que a gente sente ouvindo aquele verso “pretas e pretos estão se amando”, do Rincon Sapiência. É o que eu entendo como “mover-se além da dor”.

Haja cuidado, paciência, produtinhos e óleo de côco. Eu tenho uma camiseta antiga da Era uma Vez o Mundo onde está escrito ‘cabelo crespo é um montão de texto’. Acho que é isso. Pode ser que pra você cabelo não seja um grande assunto. Talvez você pense que, ok, ele cresce e sua maior preocupação atual é decidir se fará luzes ou não nele neste verão. Mas pra mim não, cabelo é um universo.

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Este texto faz parte de uma trilogia, acesse:

1 — Precisamos falar sobre cafuné (você está aqui)

2 — Quanto mais eu sofro, mais bonita eu fico

3 — E o colo, quando chega?

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