Plena até a página dois: como encobrir a raiva é algo tóxico

A raiva que você silencia pode te transformar em mártir (sem glamour algum). E, sinceramente: eu não sei lidar com esse sentimento.

Não consigo entender como pode soar tão estranho — quase impossível — falar de uma ‘companhia’ de longa data.

Em um dia desses, eu me vi encurralada diante do desfecho de uma situação de assédio que enfrentei: eu estava entre a mais pura raiva e o delicado medo de corresponder ao estereótipo de ‘preta barraqueira’. Tentei abafá-las ao longo de toda vida e tudo que recebi foram enjoos, dores musculares, noites insones e uma mistura de tremedeiras com choro que mais lembram o comportamento de um cachorro pinscher.

“Meu medo da raiva me ensinou nada. Seu medo da raiva irá te ensinar nada, também.” — Audre Lorde

Nessa ‘mania de controle’, eu nem percebi que 22 anos se passaram e, com ou sem conhecimento de estereótipos raciais ou teorias feministas, eu jamais tinha me permitido ‘descer do salto’. Não havia percebido também o quanto essa postura custava caro.

Existem algumas formas de ‘colocarmos pra fora’ alguns sentimentos. Escrever e fazer vídeos são exemplos disso, mas ainda assim as mulheres negras são ‘viciadas’ em dar conta de tudo. Arrisco dizer que essa é uma questão de todas as pessoas negras, independente de gênero (participei de uma conversa sobre isso no canal Muro Pequeno). Fingir que somos plenas, donas da capacidade infinita de perdoar ou até mesmo fazer piadas ácidas com lembranças de aborrecimentos e opressões como o próprio racismo não vão nos salvar da consequência que as estatísticas mostram: nós somos as maiores vítimas de problemas cardíacos no Brasil. Quem nunca, em uma família negra (ou parte dela), acabou perdendo um parente de forma súbita por conta dessas doenças? Quantos de nós não tememos ou descobrimos logo cedo que temos diabetes, hipertensão ou outros problemas que o Globo Repórter costuma ilustrar com personagens idosos?

Hipertensão, miomas uterinos, alcoolismo, depressão e até mesmo alopecia (aquela perda de cabelo que pode ser crônica), seja por tração ou estresse: nossos problemas são um emaranhado de questões biológicas e sociais que até poderiam ser amenizados ou evitados, mas o foco se perde. Nosso olhar distraído pelo dia a dia não nos permite perceber que, nas entrelinhas de todas essas doenças que mencionei, o estresse funciona como uma espécie de rio subterrâneo: não é visível, mas existe e é intenso. São as sutilezas que adoecem a gente. No início do ano, escrevi no meu diário sobre o dia em que notei que me espelhava na feminilidade de mulheres brancas para não cair nas armadilhas dos estereótipos racistas:

Eu estava pensativa enquanto andava pelo Aterro do Flamengo, saindo da terapia pra pegar ônibus. Pela primeira vez desde 2017, vesti o vestido listrado, laranja e azul marinho. Ajustado, ele ficou mais elegante ainda e, somado a outros fatores, virou chamariz pra assédio.

O mesmo vestido durante o Programa Prolíder

A minha regra do tom de voz já dura anos. Dependendo da necessidade, modulo. Se eu quero simpatia, empatia ou paciência das pessoas, a minha voz fica mais fina, ‘feminina’ e manhosa. Se eu preciso de informações concisas, estou vulnerável ou se sou eu quem está afirmando algo, a voz se torna mais grossa e firme. Eu vou de atriz à apresentadora de TV.

Diversão à parte, não é só uma estratégia de sobrevivência. É um simulacro de mulher branca. Você não vai me ver gritando, xingando ou rindo alto porque os meus pais me ‘educaram bem’ neste sentido. Eu não falo gírias. Meu gosto às vezes é lido como refinado e destoante. Eu não bebo álcool. Já disseram uma vez que a minha voz se parece até com a da mulher do Google.

A ‘Baixada Fluminense Gourmet’ te surpreende?

A postura. O olhar. A fala. Os gostos.Tudo indo muito bem, mas a cor da pele não muda. Eu nem sabia que a minha intenção e o referencial eram esses.

Descobrir que eu fazia esse esforço todo pra tentar ‘caber’ no mundo foi o meu primeiro passo nessa jornada. Em vez de ficar satisfeita em perceber esse padrão no meu comportamento, o resultado foi semelhante a cutucar um formigueiro. Eu juro que se estivesse sentada diante da Audre Lorde, perguntaria desesperada: “Tá bom, muito obrigada! Mas como é que eu vou aceitar a raiva como parte natural da minha vida?”.

Quando o sentimento de raiva me domina, eu ‘travo’. Tudo que eu gostaria é que alguém surgisse e me resgatasse dessa sensação. Apesar disso, quem nunca fez alguma coisa “só de raiva”? Ela também é combustível de muitas situações onde o otimismo foi tirar férias e só sobrou o esgotamento. Pra mim, é muito louco assumir que a raiva não serve apenas para destruir, mas também acelerar processos. Talvez seja esse o ‘tempero’ da reta final da minha graduação em Jornalismo.

Além do meu hábito de olhar pra dentro, seja na terapia ou escrevendo no meu diário, comecei a olhar em volta. Perguntei a outras mulheres se elas também vivam aparentando calma enquanto uma gritaria digna da Bolsa de Valores acontecia dentro delas. Pra minha surpresa, a maioria respondeu que sim. Já a minoria estava dividida entre aquelas que já estavam lutando contra isso (eu sou uma delas) e outras que definitivamente não buscavam se conter. Comecei a reparar nesse último caso e levar os exemplos pra minha vida.

O julgamento da minha cabeça chama carinhosamente essa ‘outra Nathália’ de ‘maluca’, mas na verdade ela tem sido a minha versão mais saudável (e olha que ela é uma ‘versão beta’! hahaha).

Se eu estou discordando de alguma fala ou atitude, me pronuncio. Se o meu corpo não está bem, diminuo o ritmo, me observo, até cancelo afazeres se for preciso. Entre a corrida supostamente urgente em direção ao transporte público ou comprar algo na feira antes de embarcar no metrô (na minha cidade, eles ficam lado a lado), tenho escolhido o segundo. Em alguns casos fui, sim, mais ‘severa’: discuti e bloqueei algumas pessoas, mesmo querendo ser benevolente. Comecei a rir de nervoso de um ‘caos’ que, lá na frente, se revelou um cultivo de paz. Foi assim que nasceu a minha Regra do Strike 3, dita lá no texto sobre eu ter parado em uma reunião da Hinode.

Aprendi a ser ‘tradutora’. As sensações e pensamentos que eu tenho agora são convertidas em voz, afinal por trás das mulheres caladas e ‘plenas’ existe muita contenção, anulação. Só esquecemos de um detalhe: aquela vontade irresistível de poupar o outro pode nos tornar mártires.

Não, nós não somos obrigadas a ir de um extremo ao outro. Eu, por exemplo, não passei a brigar com todos ou sair de casa usando uma arma. Continuo agindo ‘como uma mulher branca’ quando convém. Mais do que isso: aprendi a agir do meu jeito. Neste período, as mesmas ‘mulheres negras extremamente resolvidas’ que conversaram comigo já se reinventaram.

A verdade é que não faz parte da natureza humana agir o tempo todo de uma mesma forma. A propósito, gostaria de te fazer um convite: assista ao Animal Planet e relembre que, antes de qualquer coisa, nós somos animais. E não tem desculpa! Se você está lendo isso aqui, logo está online e pode acessar o Youtube também. As emoções existem para serem ‘usadas’ e porque, combinadas, aí sim viram um estado de equilíbrio. Das nossas referências de matriz africana ao próprio ciclo menstrual, podemos entender que o equilíbrio humano é cíclico.

Termino esse ensaio com uma sensação de estranheza enorme! Ao contrário dos outros temas já abordados aqui, este está totalmente ‘não-resolvido’ na minha vida. É o meu desafio atual e é ótimo compartilhar com vocês.

Nota: O processo de ‘parir’ esse texto aqui acabou envolvendo uma ‘gestação’ em forma de estudos sobre saúde, negritude e políticas públicas. E quando falo em ‘gestação’, quero dizer que passei quase um ano me observando e estudando, simultaneamente. E, sinceramente? Embora agora definitivamente não tenha parecido, eu sequer tenho muita paciência pra exaltações ao ‘sagrado feminino’.

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