Sapatilhas que machucam: existe feminilidade pra mim?


oi preciso que o mundo inteiro parasse pra que eu finalmente me enxergasse como um ser humano. Percebi que a minha pele estava parecendo terra seca e cinzenta depois de alguns meses em quarentena, então relembrei a importância de usar hidratante. Enquanto espalhava o creme pelas minhas pernas, percebi que os calos dos meus pés estavam tão suaves que quase desapareceram.

Ilustração: Pamella Paixão (@pretailustre)

No texto ‘Quanto mais eu sofro, mais bonita eu fico’ , compartilhei com vocês toda vergonha que sinto dos meus pés. Até então, eles sempre foram a mais pura denúncia de que eu tolerei demais calçados desconfortáveis e também herdei o formato dos pés do meu pai. Quando finalmente entendi que sou uma pessoa linda, reservei uma exceção pros meus pés feios e masculinos.

Adoro quando a jornalista Flávia Oliveira fala sobre ser apaixonada por sapatos. Ela passou a infância inteira tendo no máximo dois pares de calçados, então a vida adulta trouxe outras possibilidades. Eu conheço outras pessoas negras que vivem situações parecidas hoje em dia e, bem, acho que sou um meio-termo. Sempre tive vários calçados, mas como a gente sabe que “meu dinheiro não é capim” não é apenas um bordão da vida na periferia, logo encontrei o meu lugar.

Sapatilha que dá bolhas? Ando mais devagar. Coloco esparadrapos e band-aid

Calçado gasto de um lado só pela pisada irregular? Vou usar até o fim

Chinelo com anos de idade? Peço outro caso arrebente

Sandálias bonitas pra passear? Nada disso, minha vida é pegar metrô lotado

Botas de couro fora do valor promocional? Vou esperar a queima de estoque!

O período outono-inverno chegava e partia, mas eu me limitava a comprar apenas um par de botas e usar praticamente todos os dias, feito personagem de desenho animado. Vai que chove no centro da cidade?

O meu corpo protestava e eu fingia não ouvir, afinal sempre amei usar apenas calçados fechados. Os calos e feridas foram se multiplicando até eu começar a trabalhar como jornalista e decidir que um dos meus presentes de aniversário seria visitar uma podóloga. Ouvir uma profissional dizer que o meu caso era reversível retirou um peso gigantesco dos meus ombros, mas eu não imaginava que a principal lição do dia seria tão forte pra mim: Joelma disse que eu precisava me desfazer dos sapatos que me fazem mal. Isso mesmo, jogar no lixo sem dó! Ou, no máximo, doar os que ainda estivessem em bom estado.

Desapegar é um processo doloroso pra mim até quando se trata de algo que nem me faz tão bem. Isso vale tanto para calçados quanto para relacionamentos. Porém a obrigação de ficar em casa, alternando entre usar chinelo e ficar descalça, me fez enxergar o que acontece quando eu não ultrapasso os meus limites.

Depois que a gente começa a se relacionar afetiva e sexualmente, cada parte do corpo importa. E eu, uma mulher cis, logo aprendi que existe poder na linguagem corporal de uma mulher, seja usando salto ou uma rasteirinha. Inclusive, falando em salto, a história de Cinderela não me deixa mentir. Da mesma forma que a vergonha de rebolar atrapalhou a minha vida sexual, considerar que os meus pés não deveriam ser vistos ou tocados por outras pessoas também virou uma questão.

Felizmente, a terapia, os memes sobre podolatria e até conversas sinceras sobre a minha aparência acabaram me ensinando que o mundo enxergava uma beleza em mim que eu não tinha notado. Uma bela exceção, já que geralmente nós, mulheres negras, precisamos construir o nosso autoamor e em seguida ostentar essa preciosidade em uma sociedade que nos odeia. Como disse Maya Angelounós caminhamos e dançamos por aí como se tivéssemos diamantes onde nossas coxas se juntam. E fomos nós que lapidamos tudo isso.

Quais referências de feminilidade fazem sentido pras mulheres negras? Conversei com as minhas colegas Ana Paula Xongani e Érica Ribeiro sobre isso no meu podcast — o Influência Negra. Chorei de emoção durante esse papo da mesma forma que chorei ao descobrir que meus pés, minha pele e todo o meu corpo só precisavam de uma oportunidade. Sempre existiu um lugar pra mim no universo da feminilidade e da sensualidade. Eu não preciso, afinal, caber na sapatilha que machuca.

Agora eu e meus pés só queremos saber de fazer fotossíntese.

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