Quanto mais eu sofro, mais bonita eu fico

Imagino que as pessoas pensem até que é certa grosseria da minha parte, mas eu digo que quanto mais arrasada eu estou, mais bonita eu fico. É essa a teoria que eu quero sustentar sobre as mulheres negras.

Eu, bem deusa posando pra Adriana (Cacheada) Tavares

Pra começar, geralmente quando eu vou de turbante à faculdade é porque faltou água em casa, eu me atrasei, ou o cabelo amassou. Enfim, diversas razões. Mas, mais importante do que tudo isso, eu tenho dermatite. O turbante é pra esconder a dermatite desencadeada pelo estresse e, curiosamente, são nesses momentos em que eu mais recebo elogios como “Você está muito bonita”, “amei o tecido/amarração”, “adorei seu batom” ou outra parte do meu ‘look’.

Isso porque tudo funciona como uma máscara pra esconder que eu briguei com alguém, estou passando mal ou todas as outras histórias acima. Quando eu apareço usando bolsa e, consequentemente, uma roupa que combina com ela, não é pela moda. É porque a minha mochila precisa ser lavada e talvez eu ainda leve mais uma semana pra ter tempo de conseguir lavar.

Agora quando alguém me perguntar se eu me sustento, direi que sim. Emocionalmente, eu me sustento por obrigação. Me empurro. Sabe o poema “Still I Rise”? É isso. As mulheres negras estão sempre condicionadas a viver o problema, buscar uma solução pra ele, executar essa solução e não deixar falhas aparentes. Nunca. Se mulheres negras fossem empresas, você nunca veria a frase “Desculpe o transtorno. Estamos em reforma para melhor atendê-los” exposta em qualquer lugar.

Eu tenho um medo-vaidade que é de ficar com o entorno dos meu olhos bem escuros, parecendo um panda, de tantas olheiras. O medo não é de parecer mais velha, e sim de deixar um sinal aparente a mim de que eu não me cuido. Por exemplo, meus pés começaram a ficar cheios de calos no ensino médio, porque eu usava calçados que literalmente feriam os pés ou que eram inadequados pra minha rotina, pro peso que eu carregava e aprendi a carregar até hoje na mochila.

Sim, esses são os meus pés e seus calos.

Os calos seguem comigo também, cada dia piores. É que eu não tenho dinheiro pra calçados novos. Mentira, até tem, mas é preciso gastar com coisas mais importantes ou urgentes. Quando eu dou a sorte de ter um calçado bom e confortável, acabo usando todo dia, até dizer chega.

E o que é “dizer chega”? As pessoas perceberem que eu pareço uma personagem de desenho animado vestindo as mesmas coisas?

Não, “dizer chega” é o calçado estragar mesmo.

Eu sei, os homens negros não estão muito à frente no quesito “lidando com sentimentos”. Ninguém está à salvo, mas as mulheres negras são tão obrigadas a vestir a carapuça de heroínas que “não tem tempo ruim”. Nem pode ter, porque além de ‘nos sustentarmos’ emocionalmente, absorvemos a tarefa histórica de sustentar aos outros.

Todo o resto é uma bagunça. Parece que eu vivo naquelas cenas dos filmes de ação onde a pessoa precisa se contorcer pra não esbarrar em lasers que acionam alarmes. Um bom exemplo é o meu período da faculdade. Dessa vez, as minhas questões pessoais atravessaram os estudos. Isso significa que eu não consegui aprimorar minha escrita como deveria, ‘mostrar serviço’ e, principalmente, frequentar aulas. O adoecimento físico e mental fazem com que eu me sinta na mira dos professores e colegas de trabalho em grupo, e eu não sei o que é pior: endossar o discurso de que negros são descompromissados ou a possibilidade de ser convidada a me justificar e acabar me expondo, porque a garganta fecha e as lágrimas rolam quando a mulher negra precisa admitir — sou fraca.

Mais do que isso: quero poder ser fraca.

O meu choro é uma coisa que ninguém pode ver. Ninguém pode enxergar minhas contradições e falhas.

Cena de ‘Ela Quer Tudo’ (She’s Gotta Have It, Spike Lee, 2017), série disponível na Netflix com resenha em breve no meu canal

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