Não é segredo pra ninguém que as pessoas pretas brasileiras recebem uma influência bem grande da comunidade afroamericana (ou seja, gente dos EUA). Na internet então, nem se fala. É de lá da terra da Beyoncé que vem uma expressão chamada “Black Excellence”. Esse termo é inclusive uma hashtag usada para exaltar que pessoas pretas não são somente bons profissionais como são inovadoras e brilhantes. A ‘Excelência Negra’ veio para romper com a ideia de que “negros de sucesso” não são exceção (ainda mais no discurso da meritocracia), mas a regra.
Criança preta sendo empresária? Black excellence.
Histórias contadas e dirigidas por pessoas negras recebendo os prêmios mais importantes do mercado? Black excellence.
Dica: cliquem e vejam que os exemplos não são somente dos EUA.
Se tiver alguma pessoa branca ansiosa pra ‘se ver’ neste texto, peço que se acalme. Vai demorar um pouquinho.
Bem, eu já sou uma pessoa jovem. Profissionalmente falando, posso me considerar até ‘prematura’. É exatamente por estar na posição de quem já acumulou conquistas que não são esperadas para alguém aos 21 anos — especialmente uma jornalista negra — que enxergo nitidamente que existe um lado violento exaltarmos a tal da Excelência Negra.
Nós já crescemos ouvindo que “precisamos nos esforçar duas vezes mais”. O que parecia ser uma multiplicação, na verdade estava mais para potenciação, e eu acabei aprendendo esse tipo de ‘matemática’ fora da escola. Me esforçar 3 vezes mais porque sou mulher, negra e pobre? Nada disso, o mundo na verdade é muito mais complexo, então por favor substituam o x3 por “elevado a três”.
Porque se o homem branco diz “eu adoraria fazer ((insira aqui uma ideia inconsistente, prematura))”, as pessoas acolhem o sonho e não o questionam. Já eu chego quase que com uma autobiografia e não é o suficiente. As coisas são feitas para serem assim.*
Isso acontece porque todo mundo é culturalmente estimulado a associar branquidade à credibilidade, enquanto as pessoas negras estão no extremo oposto. Além de estarem sempre à prova, quem é negra(o) não tem direito a errar, o que muda totalmente não só as nossas relações com o trabalho, mas a nossa subjetividade. E sabe a frase “errar é humano”? Então, isso não é só um clichê se a gente levar em consideração que o histórico da escravidão e todo o racismo atual são exatamente mecanismos baseados em retirar a humanidade das pessoas negras.
E aí chegamos à ‘Espiral da Molly’.
Pra quem não sabe, Molly Carter é uma personagem da série Insecure (HBO) que é advogada, executiva e profissionalmente impecável, o que faz com que ela esteja em um ambiente extremamente branco. Ou seja, a personificação da ‘Excelência Negra’, porém isso é sufocante. Embora tenha um perfil inteligente e talentoso, a Molly precisa multiplicar seu trabalho intelectual porque, além de atender aos clientes, parte da tarefa de convencer aos chefes e colegas de que merece ser respeitada e promovida envolve ‘ser mais que uma mulher negra’. Ela monitora o modo de falar e gesticular, usa roupas incríveis, traz sugestões ‘extras’ para cada caso novo e se torna expert nos interesses das pessoas brancas em uma tentativa de encontrar um caminho de ser dignamente reconhecida.
Esses são os bastidores da meritocracia.
O que acaba acontecendo no meio do processo e pouco se fala é o quanto questões como a autocobrança, o perfeccionismo e a frustração ‘tumultuam’ o processo. O que quase ninguém conta é que no meio do caminho existe uma ‘pedra’, e essa ‘pedra se chama’ pessoas brancas medíocres, como foi o exemplo não-tão-fictício-assim do cara do “adoraria fazer”, que por muitas vezes acessa pessoas e oportunidades mas, no fim, não executa a ideia que diz. Também é assim que a ‘rede de contatos’ (ou networking) muitas vezes acaba empregando pessoas desqualificadas ou até mesmo parentes, principalmente no Brasil. É desse jeito que aquele aluno que só fala coisas para chamar a atenção do professor, inclusive coisas óbvias, continua se destacando na sala de aula sem ser questionado.
E viveram ‘medíocres para sempre’, para o choque de quem ainda acredita em mérito. Fim.
Na verdade, não. Hoje eu vim falar sobre e para as Mollys, porque eu sou uma delas, e o que acontece com a gente é que o lado venenoso da nossa Excelência Negra acessa as profundezas do nosso ‘DNA’. Ser um MULHERÃO profissionalmente, sempre sob muita dor, acaba se tornando um costume que beira ao masoquismo, porque não enxergamos outra possibilidade.
Recentemente, por exemplo, eu notei uma diferença explícita entre trabalhos individuais meus e de outras pessoas (brancas). Enquanto o meu parecia ter sido feito por uma equipe inteira, o delas tinha um padrão. Vocês acham que eu comemorei? Pelo contrário. Ali ficou nítido pra mim o quanto a necessidade de me superar e ser vista como alguém capaz acabou me tornando mais parecida com uma máquina do que com um ser humano real.
Isso não tem nada a ver com ser exibida/metida, inclusive muitas vezes esse título é colocado de forma pejorativa sobre pessoas negras. É sobre negociar a humanidade ao jogar a mediocridade fora e pagar o caro preço de ser ‘a preta fora da curva’. Exemplos simples: Beyoncé e Serena Williams vendem a imagem de impecáveis, já dizia a música, mas na primeira oportunidade depreciativa, as pessoas logo ressaltam que são negras.
Observem muito bem o nível das pessoas brancas com as quais vocês convivem. Revejam as expectativas que vocês têm sobre elas, a proporção entre suas promessas e ações concretas. Você vai perceber que para toda Excelência Negra existe uma mediocridade branca.