Histórias para assustar garotas livres

O que eu mais odiei na minha pré adolescência foi ser tratada como otária. Foi na época desse limbo entre a infância e a introdução ao universo adulto que eu estava observando uma conversa no MSN Messenger alheio:

— Eu acho que ela já perdeu.

— Pô, não vamos falar sobre isso agora não. Minhas primas tão aqui.

Eu era uma das primas. No início dos anos 2000, a internet era discada e várias pessoas disputavam espaço num mesmo computador. O ato de ‘secar’ colegas até conseguir uma chance de ficar online era comum.

Quem lembra do MSN?

Eu estava rodeada por adultos que insistiam em fazer piadas de duplo sentido e, em seguida, relembrar que crianças estavam presentes. As aspas inseridas naquele tom de voz continham toda ironia do mundo. Foi mais ou menos assim que eu passei a, como dizemos hoje, criar ranço de qualquer referência a sexo. Sabem a clássica Dança do Créu? Eu odiava porque ela escancarava o fato de que havia um universo proibido a mim.

Mas não era só eu.

Aos poucos, os medos de assombrações, do escuro ou de me perder dos meus responsáveis no meio da rua foram substituídos por outros:

“Todo mundo sabe que ela não é mais virgem! O corpo dela mudou, porque é isso o que acontece.”

“Fulana engravidou logo na Primeira Vez, agora vai ter que casar.”

“Lembra da história do Fulano e da Fulana? É, aqueles que namoravam na igreja. Ele ficou perturbando ela, então ela acabou se perdendo e aí eles foram expulsos da igreja.”

Arte de Ella Byworth para o Metro UK

Mas o que raios é se perder? Transar! Alguém resolveu associar a ideia de que a mulher cis que resolve eventualmente romper uma membrana minúscula — o hímen — não só perdeu o título de virgem, mas também o bom senso. E foi assim que, aos poucos, minha adolescência foi preenchida com histórias de meninas envergonhadas que compartilhavam boatos (aos cochichos e conversas privadas, claro) ou escondiam segredos sobre elas mesmas. Alguns desejos e dúvidas ficavam só na esfera individual e, mesmo com a vida inteira pela frente, muitas dessas pessoas vão levar a bissexualidade ou até mesmo a lesbianidade pro túmulo.

Nem sempre é preciso se perder. Existem atalhos! As pessoas dizem tanto que sexo oral e sexo anal tecnicamente NÃO são sexo que parece a crença de repetir uma mentira dezenas de vezes até que se torne verdade. Forçar essa barra é um verdadeiro alento quando você está em um namoro onde seu parceiro é bombardeado pelos colegas por especulações sobre sexo e consome pornografia desde que se entende por gente — e você tem seus próprios desejos sexuais. Daí nasce o acordo de, ‘pelo menos’ inserir um pouco de masturbação e qualquer outra possibilidade, exceto penetração de pênis em vagina.

Acreditem: pior do que ser descoberta enquanto não-virgem ou exposta por um ex-namorado abusivo é engravidar no meio dessa empreitada secreta. Algumas mulheres tiveram o desprazer de, ao primeiro sinal da menarca, serem automaticamente recebidas com um “agora já pode engravidar, cuidado!” em tom de ameaça. Me pergunto o quão longe esse discurso assustador foi. Não se trata dessas expressões terem chegado à sua cidade ou a minha. Eu quero saber o quão fundo essas ameaças foram no imaginário dessas meninas e mulheres.

Será que quem ‘se perdeu’ sem ser dominada pelo sentimento de culpa na época ‘retornou’ pra contar a história ou ficou presa no limbo daqueles adjetivos reservados àquelas que transam?

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