E o colo, quando chega?

Não tem início bonitinho pra esse texto senão dizer que eu gerei uma trilogia sem querer, então quero dizer ‘bem vinda(o) de volta’ a vocês. O meu conselho é que vocês leiam os textos anteriores antes de continuar com esse aqui.

A trilogia é assim:

1 — Precisamos falar sobre cafuné

2 — Quanto mais eu sofro, mais bonita eu fico

________

Falar ou escrever com medo é péssimo. Não necessariamente a minha posição de Youtuber me deixa tranquila para falar sobre assuntos íntimos, principalmente os que estão acontecendo em tempo real. Esse texto, assim como os vídeos do meu canal, foi tecido com muitas referências que me ajudaram a expressar e entender coisas que estavam além do meu alcance. Por exemplo, Giovana Xavier e o próprio Will Smith têm feito com que eu pense sobre como medo e coragem podem ser palavras afins.

P.S. Ainda sobre medo: empaquei. Joguei fora. Apaguei. Recomecei. Esqueci de salvar. Perdi misteriosamente arquivos. Reli coisas. Comecei. Recomecei. Chorei. Sorri. Falei. Ouvi. Concordei. Discordei. E durante todo o tempo reservado para a escrita deste texto, senti medo. Cada vez que o releio ainda sinto. Que bom é poder estar suficientemente viva para ressignificar o que sentimos. — Giovana Xavier, “Que tal falar do que não sei?”

Solidão é um assunto desconfortável. As redes sociais, por exemplo, são territórios onde a gente esconde a todo custo as falhas das nossas vidas ou, como bem viralizou no vídeo da Jout Jout, “a parte que nos falta”. Desde 2013, pelo menos uma vez por semana eu leio em algum lugar a expressão “solidão da mulher negra”. Imaginem só, cada ano tem 52 semanas, então, ‘pegando leve’, eu já tive que lidar com essa questão pelo menos 260 vezes.

Não, eu estou mentindo!

A Nathália de 16 anos de idade viu um quebra-cabeça se completar quando leu sobre ‘solidão da mulher negra’ pela primeira vez. Ela viu, assustadoramente, sua história afetiva, a das mulheres de sua família, das colegas de escola e até mesmo desconhecidas do metrô fazerem sentido.

(Estou fazendo como Raqueletta Moss, personagem de ‘Ela Quer Tudo’ (She’s Gotta Have iT, Spike Lee — 2017) ao falar na terceira pessoa sobre temas que me deixam mal)

Mas, ainda assim, eu não gosto de participar de discussões sobre a tal ‘solidão da mulher negra’, principalmente quando ela é reduzida à falta de homens e relacionamentos. Não é assim que funciona e, de certa forma, pensar que conseguir alterar o status de relacionamento corresponde ao auge da vida é um raciocínio bem parecido com as princesas da Disney.

As meninas boladíssimas da Crespinhos SA me representam

Bem, depois de toda essa introdução eu só quero dizer que levei outro susto quando concluí que eu nunca tive um relacionamento saudável na vida. Existe uma intelectual maravilhosa chamada Bell Hooks que diz que

“Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor. Essa é uma das nossas verdades privadas que raramente é discutida em público. Essa realidade é tão dolorosa que as mulheres negras raramente falam abertamente sobre isso”. — Bell Hooks, Sobrevivendo apesar da falta de amor: Empoderamento afetivo da mulher negra

O ‘cálculo’ que me levou à essa conclusão é até simples, difícil foi aceitar: imaginem que cada pessoa vem com uma ‘balança afetiva’ dentro de si. A minha está quebrada, então eu aprendi a agir de um jeito onde o ‘prato’ da doação afetiva está sempre mais pesado que o do recebimento de cuidado. Só que isso não fica aparente pra ninguém, inclusive pra mim. Pelo menos não instantaneamente.

Isso faz todo sentido levando em consideração que eu fui criada tanto em um grupo familiar quanto por uma sociedade onde as dinâmicas de afeto entre e para as pessoas negras é deturpada, ou como diria a minha avó, ESCANGALHADA.

Naturalizar a dor ainda é uma questão muito presente para mulheres negras, e eu falo aqui sobre dores físicas e emocionais. Sabem aquele famoso poema “A gente se acostuma”, da Marina Colasanti? Então. Neste caso, o meu “a gente” se refere às pessoas negras:

A gente se acostuma com a ideia de colocar um peso maior ainda na vida profissional pra ver se ignora a afetiva;

A gente se acostuma à possibilidade de ter a maternidade solo como destino certo;

A gente se acostuma com, algumas vezes, ‘abaixar a régua’ das nossas expectativas afetivas em nome do combate à carência.

A gente se acostuma quando deveria se relembrar que “tudo nela é de se amar”, como diz minha amiga Luciene Nascimento. Num dia desses, ainda mais com as discussões sobre o Dia Internacional da Mulher rolando, a Jaciana Melquiades estava falando sobre como é cansativo “se definir pelo não”. Eu concordo com ela, mas preciso lançar uns exemplos pra que principalmente as pessoas que não são mulheres negras compreendam o que eu quero dizer.

O nosso papel no mundo é muito maior do que ser o avesso das pessoas brancas.

Você com certeza já leu frases como:

“Não busque um amor que te complete, e sim que te transborde”;

“Você precisa amar a si mesma(o) antes de amar outra pessoa”;

“Você precisa aproveitar a sua própria companhia, assim saberá o quão preciosa ela é antes de dividi-la com outra pessoa”

e por aí vai.

Isso tem a ver com autoestima e a diferença entre solidão e solitude, temas importantíssimos. Porém, toda vez que eu vejo um texto ou tirinha que exaltam ações como ir ao cinema, restaurante, show, exposição, viajar, dentre outras coisas sozinha(o), eu penso:

Que solitude revolucionária é essa? Eu estou acostumada a exatamente fazer as coisas sozinha!

Que condenação ao romantismo é essa que eu vejo acontecer na internet, ainda mais em espaços feministas, sendo que essa experiência romântica nunca foi uma realidade na vida de muitas mulheres negras como eu?

Esses dois questionamentos valem muito pro contexto LGBT+ também.

Então por mais que esses discursos sejam positivos (assim como o de se repensar o amor romântico e a dependência afetiva) e eu também concorde que o autocuidado é o caminho mais saudável para uma vida mais plena, existe um efeito colateral: quanto mais a gente se aprofunda em autoconhecimento, mais as nossas fragilidades ficam visíveis a nós mesmas.

E como lidar com isso? Sendo forte, de novo. Ok, forte com uma pitada de autocompaixão, mas ainda assim, forte. Tudo isso bem na hora em que eu entendi que quero poder ser fraca.

Quando você está uma ‘balança quebrada’ na vida de modo geral, isso significa, por exemplo, que você pode se submeter a bancar o estereótipo da mulher negra superheroina (ei, tem um vídeo importantíssimo e legendado sobre o assunto AQUI ) . Você vai querer salvar o dia dos seus amigos dando uma força aqui e ali, absorvendo as questões das vidas deles. Você vai querer segurar a barra de um conflito familiar, afinal perturbar a paz não é contigo. Você não vai querer discordar do tratamento que o seu chefe deu ao seu trabalho porque gosta de agradar as pessoas, mesmo que isso signifique que às vezes você desagradará a si mesma.

Você não vai querer desabafar com ninguém sobre os perrengues da sua vida pois não quer incomodar ninguém. Entendem porque é uma reação em cadeia só porque a sua capacidade de doação e a de recebimento estão desequilibradas? Faz sentido dizer que isso vai muito além de um relacionamento amoroso?

E aí, no fim, muitas vezes a mulher negra nunca é o centro das atenções no quesito ‘receber afeto’.

Arte do talentosíssimo Mateus Lima

Uma coroa na cabeça, mas o mundo sobre meus ombros”. Isso é uma frase da Janelle Monàe que chega muito perto de definir o quanto mulheres negras ditas como ‘empoderadas’ também estão sujeitas a uma série de vulnerabilidades, afinal ainda somos humanas (mesmo que nós e o mundo nos esqueçamos).

Então se você, que leu tudo isso até agora — obrigada! — ainda está se perguntando o porquê de eu estar me expondo dessa forma, nesse medo-coragem, só posso responder que isso faz parte de um processo curativo muito grande. Eu estou feliz com essa jornada que é pessoal e coletiva, visto que estamos compartilhando a história bem agora.

Mas, assim como a percepção de naturalizar a dor, eu tenho um grande medo de enrijecer demais quando o assunto é possibilidades de afeto. Será que quando esse amor — e relações de modo geral — pleno surgir, a reação será acolher, repelir ou sair correndo de medo?

Lembrando, é claro, que não existe ‘plenitude’ ou ‘perfeição’ porque as pessoas são únicas e complexas, mas escolhi nomear assim.

Por último, eu tenho uma pergunta para vocês:
Mulheres negras, vocês também perceberam um ‘salto’ nas suas vidas quando não só se permitiram ser cuidadas, mas estabeleceram relações afetivas baseadas, antes de tudo, no amor que vocês sentem por vocês mesmas? Isso foi tranquilo ou confuso? As minhas redes sociais e caixas de mensagens estão totalmente abertas a esses comentários e depoimentos.

Dizer que estamos buscando uma cura para as nossas questões e medos não significa exatamente que toda essa história tenha um fim. É um processo constante.

Quando nos amamos, sabemos que é preciso ir além da sobrevivência. É preciso criar condições para viver plenamente. E para viver plenamente as mulheres negras não podem mais negar sua necessidade de conhecer o amor. (…) Quando nós, mulheres negras, experimentamos a força transformadora do amor em nossas vidas, assumimos atitudes capazes de alterar completamente as estruturas sociais existentes.” — Bell Hooks, Vivendo de Amor

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