Não existe um campeonato na hierarquia de opressões, mas eu imagino que essa seja a primeira vez em que eu falarei sobre questões de classe. Quero aproveitar essa oportunidade de estreia para também assumir outro traço meu: a ingenuidade.
Algumas pessoas podem me conhecer como Nathália Braga, mas em espaços de ativismo parece até que tenho outros sobrenomes. Assim, o nome completo fica:
Nathália Braga Preta Pobre da Baixada Jornalista Mulher Ativista Youtuber Escritora.
Cada uma dessas identidades corresponde a um peso diferente a se carregar, o que faz com que todos os dias sejam uma experiência de sobrevivência pra mim. Como diz o Julio, meu melhor amigo, é exatamente igual ao antigo seriado 24 Horas. As pessoas que têm ‘sobrenomes’ parecidos com o meu geralmente lutam para ‘desarmar uma bomba’ a cada dia.
Digamos que cada ‘sobrenome’ desses funciona como um ‘shot’ de energético para uma pessoa que já é diagnosticada com insônia. E eu já explico.
A minha ingenuidade mora no outro lado da questão: Como pode ser a experiência de vida no Brasil para quem é socioeconomicamente mais privilegiado do que eu?
O meu trabalho, principalmente esses textos no Medium, têm servido como um espaço onde alguns amigos meus que são brancos e/ou de classe média afirmam aprender um pouco mais sobre os meus ‘nomes’ e criar empatia. Agora eu quero fugir um pouco ao padrão daqui e relembrá-los que, quem observa também é observado ou, como está na Aparelha Luzia, “as histórias têm outros lados”.
CENA 1 — Almoço de família
Não precisa nem ser domingo. A selfie mostra todo mundo sentado à mesa aguardando a refeição ou com os pratos já servidos. Diferentes gerações juntas, às vezes a legenda até sugere noivado ou que a família está prestes a aumentar. Os comentários de outros parentes ‘pipocam’: “Que família abençoada!”. É o comercial de margarina, agora na vida real.
Não existe família perfeita no mundo, as novelas das 21h demonstram bem como há conflito em qualquer lugar, mas ainda assim fico admirada. Converso comigo mesma:
Já pensou, uma família estável? Que sensacional ver o conhecimento da árvore genealógica indo longe! É claro que aqui também almoçamos, fazemos festa e churrasco frequentemente. Agora imagina só ver mais casas com figuras masculinas atuantes e menos silêncio lá em agosto, quando chegar o Dia dos Pais?
CENA 2 — Viagem
Esta é uma pegadinha.
É só mais um dia comum no Rio de Janeiro, a caminho da faculdade e do trabalho. Chegando à faculdade, lá está a Mariana:
Chinelo (ou sandália rasteirinha), ‘blusinha’, short, uma bolsa onde mal cabe o celular, caderno e o cabelo preso num coque frouxo, assim como dizem as ‘fanfics’.
Parece até que nós somos de países diferentes. Em contraste, eu:
Calçado fechado, camiseta, calça jeans, uma mochila grande e resistente, vários cadernos e o cabelo dentro de um turbante (pois já falamos sobre como ‘quanto mais eu sofro, mais bonita eu fico” em outro texto daqui).
Eu quero explicar, com um jogo de palavras, a diferença entre as frases “Sair de CASA com a MOCHILA nas costas” e “Sair de MOCHILA com a CASA nas costas”. Eu sempre represento a segunda. As pessoas de ‘sobrenome insone’, como eu, saem de casa preparadas para tudo: tem comida, agasalho, guarda-chuva, material de trabalho, itens de higiene pessoal e às vezes até uma muda de roupa. “Vai que não consigo voltar pra casa hoje?”.
Raramente você ouvirá de nós a pergunta “Alguém tem um carregador de Iphone?”, como eu ouço praticamente todo dia nos espaços privilegiados que ocupo. Mas, não se precipite. Isso não é porque não temos Iphone — pelo contrário, vários de nós já compramos — , e sim porque estamos sempre tentando prever as voltas que o mundo vai dar.
CENA 3 — A compra do mês
Estava em um encontro amoroso com uma pessoa que, assim como toda ‘crush’ (ou paixonite, para os que não entenderam) em potencial, ‘aterrissou’ no meu cotidiano. Fomos a um lugar romântico: o totem de recarga para Bilhete Único em uma das estações do VLT.
Os três dígitos que apareceram na tela surpreenderam o ser humano, que nem fazia ideia de que aquela seria a maior compra do meu mês. “É o maior custo do meu mês, acredita? E não é o suficiente, ainda vou recarregar de novo”. E foi assim que nos despedimos.
O valor que entrou no meu Bilhete Único foi próximo ao que a ‘crush’ costuma pagar ao Uber, comidas ou em peças de roupa pela internet. Tá aí como significamos “padrão de vida” e “sobrevivência”.
PARTE II: Acordada demais para sonhar (ou, “Porque este texto saiu”)
Tenho trazido alguns gostos meus à tona, como o planejamento pessoal, itens de papelaria e andar em ônibus decentes. Privilegiada que sou — sim! — , saí de uma das minhas sessões de coaching (aquele programa de desenvolvimento pessoal e profissional) e resolvi experimentar um trajeto novo até a minha casa. Acabei passando por um bairro de classe média-alta do Rio cujos tipos de casas eu não via há meses. Ainda não pude entrar em imóveis desse padrão, somente no meu jogo favorito, The Sims.
Aí eu fiquei triste. Não por estar diante do que não tenho acesso, mas exatamente por estar tão imersa em uma rotina de sobrevivência que me esqueço de sonhar com algo tão concreto quanto aquelas casas. Existe uma diferença bem grande entre pensar “preciso de dinheiro” e “eu quero uma casa amarela e arborizada onde caiba eu, meus gatos, um escritório e, quem sabe, minha futura família e amigos”.
O mundo é capitalista. Estamos no inferno, que “abracemos o capeta, então”. Pensou errado quem imaginou que eu só queria ‘colocar o dedo’, ainda que virtualmente, na cara das pessoas privilegiadas e gritar “VOCÊ É FÚTIL E EU TE ODEIO!”. Também pensou errado quem imaginou que eu queria celebrar a ‘gambiarra’, a ‘pobreza’ e a tal da ‘correria’. Sim, elas têm seu lado que surpreende positivamente, mas eu sou uma pessoa negra em ascensão (aí ó, os sobrenomes!) que NÃO quer viver de ‘correria’ se a ‘linha de chegada’ for um padrão de vida insustentável, talvez até mortal.
Eu não ouço Racionais MCs, mas aprendi com a Monique Evelle que “preto e dinheiro NÃO são palavras rivais”. Às vezes as opressões nos tiram tanto o sono que ‘nivelamos as coisas por baixo’. Em termos de valores e caráter, pobres não são inferiores em nada em comparação aos ‘ricos’, ‘privilegiados’ ou mesmo os ‘classe média’. Nomeie como quiser.
Do topo dessa pirâmide social, rotula-se muito gente ‘da Silva’, como eu, de “carentes”. Cá entre os Silva, entendemos que na verdade a ‘carência’ pode estar exatamente em quem escolheu o adjetivo. Sim, nós temos muitos pares de olhos, intelectualidade e ‘sobrenomes’. Estamos cientes.
Se é na ‘casinha amarela cheia de plantas’ onde está a qualidade de vida, é pra lá que eu vou. Sem pensar duas vezes. É por isso que a expressão “sonhar acordada” existe.